quinta-feira, 12 de novembro de 2015

À Deriva ("Il n'y a pas des marins")





Num mar cruzadod correntes e traçados,


que ora são concorrentesd e viram coincidentes

ao sabor dos ventos e de ondas enlaçadas,

vai  vogando uma caravela simples nos seus mastros,

de velas arreadas,

com seu leme desgovernado,

ao desvario da sorte, num desvario rumo sem norte.

Não clama marinheiro,

não chora fortuna,

espreita antes a desventura

por detrás daquela vaga,

no desvanescer da espuma

do encontro com as rochas.

Gaivotas não se ouvem,

farol não se vislumbra,

cantando seu próprio canto,

de sereia malfadada,

sem ter fundo a seus pés,

nem sentir a areia que chega.

Afaga seu corpo na onda fria do mar

querendo o abraço ávido de ter,

o ser que por entre si se escorre

na água que se lhe atravessa,

sem agarrar ou palpar.

Fechando as mãos num vazio,

líquido e feito de nada,

como o nada que fica,

do mergulho salvador,

no turbilhão dos sentidos,

em que agora o sonho se afoga,

calmo e silencioso

num remoinho que nos afunda.
(1990)




quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O SORRISO SEM ABRIGO


(20 anos atrás dum lado da rua à entrada dum centro comercial, do outro lado da rua um casario de barracas) 

Não me lembro do seu nome
Mas lembro sempre o seu sorriso
O mesmo sorriso de sempre
Todos os dias, a qualquer hora. 

Era um homem alto e desenvolto
De cara aparada e porte erguido
Já não sabia da família, filhos sabia que tinha
Onde e se ainda viviam, só Deus o saberia
A saúde, o desnorte e o desatino tudo levaram
Menos aquele sorriso de sempre
Todos os dias, a qualquer hora. 

Todos o conheciam e a todos saudava
De trato polido e atenção esmerada
Fazia questão de a todos ajudar
Levando os sacos de comida, que em casa não tinha
E nada pedia, por acanho, por humildade
Mas com aquele sorriso de sempre
Todos os dias, a qualquer hora. 

Via-o quase todos os dias ao almoço
E no final do dia lá estava ele esperando
“Mais um dia doutor” teimava ele sorrindo
Já desistira de lhe corrigir o titulo
Era por graça que o dizia, ou malandrice talvez
Pois trocava o sorriso de sempre
Por um sorriso brejeiro e maroto. 

Sabiamente falava do que a vida lhe ensinara
De tudo o que já tivera e do nada que restava
Sem queixumes, sem piedade
Sabe Deus o que lhe iria na alma
Apenas daquele barraco frio e húmido
Se queixava amiúde, da bronquite e tosse
Que lhe quebrava o sorriso de sempre. 

Ganhara de todos enorme estima, amizade
E meias, comida… xaropes para a maldita tosse
Não eram esmolas, nem favores
Que na sua integridade merecia mais
Eram antes uma gratidão nossa pela paixão
De termos aquele sorriso de sempre
A qualquer dia, a qualquer hora. 

Passou um dia, uma semana, talvez mais
Não mais o vi, nem àquele Homem bom
Nem aquele sorriso que me alegrava o dia
A pneumonia as suas forças levaram
Terminara o seu sofrimento, ficou o vazio
Daquele lugar, daquele tempo, da sua presença
Que de simples mas digno, marcou a diferença. 

De nada importa a cor ou condição
Daquele homem que ficou na memória
Não me lembro do seu nome
Mas lembro sempre o seu sorriso
O mesmo sorriso de sempre
Todos os dias, a qualquer hora.
 

terça-feira, 24 de março de 2015

DIGNIDADE


Do passado,
Não importam as árvores que plantei
Se as reguei com suor ou lágrimas
Se as descurei ou desvalorizei
Por descuido, não por menosprezo
Outras por defeito também.
Algumas secaram, outras arrancaram
Outras ainda, seus ramos me feriram
Lágrimas de impotência jorraram.
As do passado já não as carrego comigo
Não faço mais delas a minha cruz
Tampouco as usem para me cruxificar.
Da árvore da Vida moldei o carácter
Fruto do exemplo de quem me criou
Podando os ramos com defeitos
Para que novos e melhores cresçam
Com o tempo e a sabedoria colhida.
Venham ventos e tempestades
Essa ficará sempre de pé e íntegra
E foi a mais importante que plantei
A da DIGNIDADE que me faz erguer.
Por mais simples que ela seja
Não é o Ter que prevalece
Mas sim o Ser que a engrandece.