quarta-feira, 4 de novembro de 2020

águas que correm

entre senzalas onde as mulheres
amassavam a farinha no pilão enorme
imensos ribeiros mansos corriam
e se cruzavam dando vida e fartura
saciando a sede e fonte de regadio
dos que abençoados dele desfrutavam 

nesses ribeiros onde a água abundava
o homem moinhos de água construiu
moendo com as suas pás a farinha 
enchendo-a em sacos fosse dia ou noite
sempre que o vento as rodas rodasse
que feito pão alimentasse a cada dia

naquele moinho nasci e aprendi a andar
não recordo pela minha pequenês 
a labuta e azáfama de meu pai 
que a qualquer hora da noite na água
mergulhava o seu corpo ainda jovem
nas horas em que o vento aprouvesse

nessa aldeia rodeada de senzalas
fui correndo, pulando e criando
a verdadeira noção de liberdade
pelos infinitos horizontes do planalto
e o valor do pão que no forno e lenha
minha mãe com destreza cozia

lembro depois pequenino e deslumbrado
luzes que despontavam na madrugada
enquanto o barco a marginal corria
para atracar no cais da grande cidade
onde um rio enorme docemente corria
era um mundo novo diferente do mato 

para trás lá longe ficaram as memórias
agora era tempo de crescer e viver
nessa adorada cidade que tão belo rio
a rodeava com suas fragatas e faluas
ainda recordo as varinas e seus pregões 
o funileiro a mulher das bolas de berlim

as bolas de trapos os berlindes e caricas
os soldadinhos de chumbo e índios
os quintais os jardins e as ruas livres
onde corria jogava e solas rompia
joelhos esfolados cabeça partida
tudo era alegria e contentamento

aprendi as letras as cores e os sonidos
aprendi também o valor enorme
das reprimendas maternais diárias
feitas de chinela ou da escova do fato
mais não eram que o amor firme
balançando entre o calor do seu colo

aqui na grande cidade amores vivi
os platónicos e sonhos da mocidade 
os que deram frutos hoje feitos homens
os que ficaram algures e podiam ter sido
os que partiram ficando a aprendizagem
e os desamores que por encanto se iam

como o amor desta grande cidade
com cantos e recantos que encantam
de toda uma vida e nela tantas vidas 
algumas que já não voltam mais 
o moleiro que do moinho dava farinha 
e a mulher que dela fazia o pão

uma página da vida que vira e volta
entre este rio onde corre a seiva
e os cantos já sem tantos encantos
invadidos por pueris interesses
onde pedras e casquilhos me feriram
e outro rio que corre ao mesmo oceano

um rio azul onde pululam golfinhos
onde as gentes desconhecidas 
dão os bons dias a estranhos como eu
leve, solta e simples nos seus jardins
levo as pedras preciosas que guardei
como riqueza e tesouro do meu íntimo

entre os ribeiros e ribeiras da infância
navegando rio acima e abaixo
tomei os meus rumos e caminhos
nalguns mergulhei em remoinhos fundos
noutros a bonança de bem fazer
quatro paredes vazias que me prendiam

novo rumo novos caminhos outro rio
pedras preciosas que me enchem 
dando objetivo e sonho de viver
entre um lado e outro percorrendo
a vontade desse caminhar sorrindo
longe do entulho e perto do que quero



terça-feira, 29 de setembro de 2020

esperança

que a cruz pesada feita de ferro 
forjada por mil e uns cuidados
pelas lágrimas vertidas sem chorar
pelo suor da labuta sem ver fim
pelo sangue derramado como feridas

se transforme, não por milagre
mas pela tenacidade e amor
pelo bem fazer sem ser notado
em coloridas, suaves e leves penas 
sem serem de dores e silêncios feita

que as noites mal dormidas e escuras
dêem lugar ao sonho e sono tranquilos
iluminadas pela luz e brilho desse teto
que as estrelas por cima no céu forram
pousando serenamente nos teus olhos

na bonança permanente de esperança





segunda-feira, 21 de setembro de 2020

correntes do mar alto

que vi em ti naquele dia de cores

e em todos os que se seguiram

que deslumbrado feitiço de luz

ou singular canto de sereia

me prendeu cativou e eternizou.


minha alma perdida e corpo inerte

choram perante a tua indiferença

das promessas em vão rasgadas

do dizer e desdizer que tu assumes

amigo hoje, ontem e amanhã nem sei.


apenas sei que nada sei de mim

como uma criança perdida e sofrida

no meio do vazio cheio de gente

de quem nada quero nem consigo

querer ou seguir outro caminho.


este sentimento não veio ao acaso

não se consegue dar ordem de despejo

nem adulterar o que à alma pertence

nem outro ousará poder possuir

assim sem rumo, sentido ou destino.


só lhe restará sózinho navegar 

em movimentos trôpegos sem ritmo

no turbilhão das ondas em mar alto

procurando sentidos que não o amor

pois o que é único morrerá comigo.


(16/09/2020)




domingo, 16 de agosto de 2020

um lapso de memória apenas

quando a morte chegar

que importa se estou só

se estou acompanhado

na rua, no mar ou no leito


chegará de qualquer forma

imprevista ou previsível

seja ao amanhecer, entardecer

noite de luar ou escura como breu


apenas a certeza que ao chegar

estarei vivo sem saber ao que vem

só ou acompanhado nada mais resta

só lhe rogo um minuto apenas


para lembrar sorrindo o que fui

o que fiz e ficou por fazer

o amor que dei e ficou por dar

nada mais sobrará desse momento.

(Adriano Costa - 16/08/020)




quinta-feira, 25 de junho de 2020

O miúdo, o velho e o tempo

Em toda a essência do meu ser
não encontro a idade ou os anos
dos que já passaram e os que hão de vir
quantos não sei nem interessa saber
apenas as memórias e o conhecimento
me lembram que já os vivi
com certezas, erros e escolhas, amores e desamores,
alegrias, dores e penas
de sucessos à tábua de salvação.

Mas a vida e as gentes, na sua vã e aparente visão
lembram-me a todo o momento
que já não sou ou é estranho ser, aquele miúdo
que cheio de alegria e esperança, se doa e se dá completamente,
seja num girassol dado expontaneamente,
como qualquer ser que se preze
e preza quem lhe despertou um amor assim
(ela que nele conseguia ser mulher e menina),
seja por viver na verdade dos seus sentimentos
próprios da inocência e pureza duma criança
e por certo enquanto viver nunca deixará
que dentro de si ele desapareça
se coíba ou se torne frio e vazio de sentimentos.

De fora fica o invólucro feito de folhas de outono
que o protegem como a uma flor ou um fruto
esperando as outras estações e tempos
e mesmo que para o miúdo seja um pormenor de somenos
que não o vê pois que tanto sente
e pela vida vivida vibra mais que nunca
outros, habituados aos padrões convencionais
ou não sabendo distinguir o que se é e se quer
o vêm já como um velho
com traços leves e finos, tão diferentes
doutros mais robustos e possantes
mas que dessa posse confundem o ser com o ter
nada fazendo por merece-las.

Não, repito que não!
Mesmo sem Ofelias ou Dulcineias
esse velho continuará o miúdo de sempre
como sempre foi desde que nasceu
e miúdo morrerá um dia
como todos os que um dia o foram
e que pela vida fora o foram esquecendo,
ou tiveram vergonha de o mostrar,
(pois que por muitos é visto como sinal de fraqueza).

E nesse dia final decerto uma lágrima lhe escorrerá
não pela naturalidade do desenlace
mas por tantos sonhos não concretizados
pelas flores que ficaram por dar
àquela que no seu coração foi merecedora de as colher
e recordar o seu rosto e leveza
pincelada em manchas de tinta
como aqueles balões coloridos à entrada do jardim.



segunda-feira, 11 de maio de 2020

Se outro nome houvesse...


Se a dor tivesse um nome
seria o teu decerto.
Se a cruz fosse um desenho
teria como silhueta o teu corpo.
Se o sofrimento tivesse rosto
ver-se-ia lá estampado o teu.
Se olharmos por quem não desiste
veremos sempre tu presente.

Se quisermos para tudo isso
dar um nome ou explicação,
expressa-se no teu amor maternal.


Se procuramos onde reside a força
encontra-mo-la bem dentro de ti
naquilo que é o teu âmago e essência.

E no riso e tropelias da criança e menina
que persistem na tua alma de mulher
para nosso deleite e exemplo.

(Adriano Costa – 11-05-2020)



segunda-feira, 2 de março de 2020

A leveza do sonho

Se eu adormecer no teu colo
não me acordes por favor,
sorri e deixa apenas
que a brisa fresca e suave
leve os teus cabelos soltos
cobrirem o meu rosto sereno,
eleva os teus olhos às nuvens,
lá verás os meus sorrindo-te
e velando pelos sonhos,
que pedra a pedra
qual castelo encantado,
ou jardim das aventuras
flor a flor juntos plantámos,
desde aquele dia mágico
que balões no ar adivinhavam;
lembras-te do arco-íris,
aquele das manchas de tinta
que espalhamos e criámos?
foi aí que o sonho nasceu;
não me acordes meu amor,
fecha os olhos e entra no sonho,
pois que é nosso o mundo.

Objectos cinematicos - Pietro Proserpio

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Manchas de Tinta

De manchas de tinta coloridas
se tingiram e invadiram nossos corpos,
da penumbra e sombra daquele sótão
sustentado em pilhas de livros encantados,
desceu até nós uma luz feita de sentidos
num jogo de claros/escuros ofuscantes
pousando suavemente nas nossas mãos entrelaçadas,
até se cruzar nos traços dum beijo feito mel;
e nas nossas vidas renascidas, da noite fez-se dia,
com todas as cores dessa mancha de tintas,
em pinceladas de amor, amizade e companheirismo,
criamos assim todos os dias um belo arco-íris,
simples, como a brisa que o descobre
por entre aquelas nuvens mágicas,
descobrindo as folhas que declamamos
com páginas e capítulos dum e doutro
do livro que palavra a palavra juntos escrevemos,
entremeadas pelo som dos nossos cantares, 
de tal forma harmoniosas as cores irradiam
que toda a sua beleza se espalha no firmamento
que noite e dia olhar algum alcança,
porque é nosso o céu, a lua e o infinito.


Bicicleta Voadora - Pietro Proserpio